quarta-feira, 7 de setembro de 2016

“INDEPENDÊNCIA OU MORTE”: O GRITO EXISTIU?

Prof. Douglas Barraqui

Riacho do Ipiranga, setembro de 1822, o príncipe regente D. Pedro, futuro imperador do Brasil e rei de Portugal, estava com fortes dores intestinais. Se via obrigado, em intervalos regulares, a apear do animal que o transportava, uma mula, para “prover-se” no denso matagal que cobria as margens da estrada. Acredita-se que tenha sido algum alimento mal conservado ingerido no dia anterior em Santos, no litoral paulista, ou a água contaminada das bicas e chafarizes que abasteciam as tropas de mula na serra do Mar.

D. Pedro era acompanhado por uma comitiva relativamente modesta para a importância daquele momento histórico. Além da guarda de honra, acompanhavam D. Pedro o coronel Marcondes, o padre Belchior, o secretário itinerante Luís Saldanha da Gama, futuro marquês de Taubaté, os criados particulares João Carlota e João Carvalho e o ajudante Francisco Gomes da Silva, “O Chalaça” (algo como zombeteiro, gozador ou piadista),  que acumulava as funções de “amigo, secretário, recadista e alcoviteiro” de D. Pedro.

Antes mesmo da subida da serra os problemas intestinais forçaram o príncipe a se refugiar na modesta estalagem situada à beira do porto. Maria do Couto, responsável pelo estabelecimento, preparou-lhe um chá de folha de goiabeira, remédio ancestral usado no Brasil contra diarreia.

No cair da tarde daquele Sete de Setembro a comitiva chegou à colina do Ipiranga. Por ordem do príncipe que, mais uma vez se vira compelido por fortes dores estomacais, a jornada foi mais uma vez interrompida. Em tupi-guarani, Ipiranga significa “rio vermelho”. Naquela época, apesar da tonalidade escura e barrenta de suas águas (daí a denominação), era um arroio selvagem e sem poluição. Hoje, é um canal de esgotos encaixotado sob o asfalto e o concreto de uma das maiores metrópoles do planeta, São Paulo.

D. Pedro ainda estava no alto da colina quando chegou a galope, vindo de São Paulo, o alferes Francisco de Castro Canto e Melo. Ajudante de ordens, amigo de D. Pedro e irmão de Domitila de Castro Canto e Melo, a futura marquesa de Santos, amante de D. Pedro I. Ao se encontrar com a comitiva real, Canto e Melo trazia notícias inquietantes, mas sequer teve tempo de transmiti-las a D. Pedro. Logo atrás dele chegaram dois mensageiros da corte do Rio de Janeiro. Exaustos e esbaforidos, Paulo Bregaro, oficial do Supremo Tribunal Militar, e o major Antônio Ramos Cordeiro que, praticamente sem dormir, tinham percorrido a cavalo cerca de quinhentos quilômetros em cinco dias. Eram portadores de mensagens urgentes enviadas por José Bonifácio e a princesa Leopoldina, mulher de D. Pedro, encarregada de presidir as reuniões do ministério na ausência do marido. A carta da princesa Leopoldina recomendava ao marido prudência e que ouvisse com atenção os conselhos de José Bonifácio. A mensagem do ministro dizia que informações vindas de Lisboa davam conta do embarque de 7.100 soldados que, somados aos seiscentos que já tinham chegado à Bahia, tentariam atacar o Rio de Janeiro e esmagar os partidários da Independência. Diante disso, Bonifácio afirmava que só haveria dois caminhos para D. Pedro. O primeiro seria partir imediatamente para Portugal e lá ficar prisioneiro das cortes, condição na qual já se encontrava seu pai, D. João. O segundo era ficar e proclamar a Independência do Brasil, “fazendo-se seu imperador ou rei”.

Mas, e o brado “Independência ou Morte”, famoso “grito do Ipiranga”? Ele existiu? Veja abaixo três relatos para os fatos que ocorreram:

Relato do Padre Belchior:

Pela descrição do padre Belchior não houve sobre a colina do Ipiranga o “Independência ou Morte”. Veja o relato do padre abaixo:

“D. Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, virou-se para mim e disse:

— E agora, padre Belchior?

Eu respondi prontamente:

— Se Vossa Alteza não se faz rei do Brasil será prisioneiro das cortes e, talvez, deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação.

D. Pedro caminhou alguns passos, silenciosamente, acompanhado por mim, Cordeiro, Bregaro, Carlota e outros, em direção aos animais que se achavam à beira do caminho. De repente, estacou já no meio da estrada, dizendo-me:

— Padre Belchior, eles o querem, eles terão a sua conta. As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal.

Respondemos imediatamente, com entusiasmo:

— Viva a Liberdade! Viva o Brasil separado! Viva D. Pedro!

O príncipe virou-se para seu ajudante de ordens e falou:

— Diga à minha guarda que eu acabo de fazer a independência do Brasil. Estamos separados de Portugal”.

Relato do alferes Canto e Melo:

O relato do Alferes foi registrado bem mais tarde. Em um momento em que o acontecimento já havia entrado para o panteão dos momentos épicos nacionais. A versão do alferes Francisco de Castro Canto e Melo e irmão de Domitila de Castro Canto e Melo, de tom obviamente militar, mostra um príncipe resoluto e determinado. Por ela, D. Pedro teria lido a correspondência e, “após um momento de reflexão”, teria explodido, sem pestanejar:

“— É tempo! Independência ou morte! Estamos separados de Portugal!”

Relato do Coronel Marcondes:

O coronel Marcondes, infelizmente não estava no alto da colina do Ipiranga em condições de esclarecer as contradições entre os depoimentos do padre Belchior e do alferes Canto e Melo.

“Diante da guarda, que descrevia um semicírculo, [D. Pedro I] estacou o seu animal e, de espada desembainhada, bradou:

— Amigos! Estão, para sempre, quebrados os laços que nos ligavam ao governo português! E quanto aos topes daquela nação, convido-os a fazer assim!

E arrancando do chapéu que ali trazia a fita azul e branca, a arrojou no chão, sendo nisto acompanhado por toda a guarda que, tirando dos braços o mesmo distintivo, lhe deu igual destino.

— E viva o Brasil livre e independente — gritou D. Pedro.

Ao que, desembainhando também nossas espadas, respondemos:

— Viva o Brasil livre e independente! Viva D. Pedro, seu defensor perpétuo!
E bradou ainda o príncipe:

— Será nossa divisa de ora em diante: Independência ou Morte!

Por nossa parte, e com o mais vivo entusiasmo, repetimos:

— Independência ou Morte!”

Como um simples tropeiro, coberto pela lama e a poeira do caminho, às voltas com as dificuldades naturais do corpo e de seu tempo, por volta de 16:30 do dia 7 de setembro de 1822, D. Pedro, que completaria 24 anos um mês depois, no dia 12 de outubro, proclamou a Independência do Brasil as margens do rio Ipiranga, hoje um valão.

Se houve ou não o grito “independência ou morte”, talvez nunca vamos saber. O fato é que aquela cena que nas palavras de Laurentino Gomes: “... real é bucólica e prosaica, mais brasileira e menos épica do que a retratada no quadro de Pedro Américo. E, ainda assim, importantíssima. Ela marca o início da história do Brasil como nação independente”.

REFERÊNCIAS:

GOMES, Laurentino. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado / Laurentino Gomes - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2010.


SOUSA, Octávio Tarquínio de. História dos fundadores do Império do Brasil: a vida de D. Pedro I (três volumes). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.

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